Clóvis de Barros Filho e Pierre Bourdieu

O aviso no mural era claro. A primeira aula de sociologia do ano (1988) estava prevista para as 9h, em quatro anfiteatros diferentes. Cheguei meia hora antes. Fingi não saber de nada e perguntei a um funcionário sobre o local e horário. Ele me indicou, sem hesitar, o número de um deles. Tranquilizado, encaminhei-me. Primeiro, seguindo flechas. Depois, o próprio fluxo dos alunos. Já na sala, não percebi, de imediato, a tela no lugar da cátedra. O esclarecimento do colega ao lado se impôs: “Para assistir onde ele está, é preciso chegar antes das 7h. Ainda mais no começo do curso. Depois vai melhorando”. Alguns minutos antes das 9h, a luz do projetor faz o silêncio. A primeira imagem é de uma mesa vazia e uma cadeira. Atrás, uma porta que se abre, segundos depois. O professor sobe os degraus do estrado e se aproxima da mesa. Teatro para uns, cinema para outros. O rito de uma prática incorporada, em anos de docência, dispensa o ensaio. Seus gestos contrastam com a solenidade do cenário. Um assistente de ensino fundamental que entrasse numa sala de aula pela primeira vez não agiria diferentemente. Ainda de pé, abre a mala e retira um pedaço de papelão dobrado ao meio que lhe serve como pasta de papéis. Senta-se. Ao desdobrá-lo, acusa o equívoco franzindo a testa. Levanta-se e troca de pasta. Volta a sentar-se. A mala, ainda aberta, é colocada no chão. Pela primeira vez o professor contempla, de relance, os ouvintes. As folhas, manuscritas, escapam pelas bordas da pasta. São reempilhadas. As orelhas das páginas não parecem incomodar. Passados alguns segundos das 9h, Pierre Bourdieu toma a palavra.

Pierre Bourdieu

Madrugadores
Para alguém acostumado a longas apresentações e votos de boas-vindas, os primeiros minutos produzem desconforto. Sem recorrer aos jargões introdutórios tão comuns na academia, a intervenção não marca simbolicamente seu início. A tal ponto que cogitei se tratar de um trecho de uma aula gravada. Ingenuidade de que se pouparam os mais madrugadores, co-presenciais ao mestre. A aula apresentaria duas partes. A essa conclusão só cheguei depois de transcrevê-la por completo. Num primeiro momento, faz a abordagem sociológica de sua própria produção e das referências filosóficas de seus principais conceitos. Na segunda parte, mais curta, propõe reflexão também sociológica sobre uma aula, uma aula inaugural, no Collège de France.

A sociologia da produção
Uma profissão de fé metodológica, em retórica mais inflamada do que de hábito, punha em alerta a audiência. A preocupação de todo pai fundador de garantir especificidades, definindo-as sistematicamente. O imperativo categórico é objetivar o sujeito objetivador. Tomar, dessa forma, na análise da própria produção científica, as cautelas epistemológicas de qualquer investigação. Objetos, quadros teóricos de referência, instâncias de produção e divulgação científica decorrerão desse rigor metodológico singular. Inscrevendo-se num campo de produção das ciências sociais, o professor se esforça, passo a passo, para marcar fronteiras em relação a outros campos -e posições em relação a alguns membros do campo. As rupturas propostas não são neutras. Primeiro, Marx. “Discorrer sobre a importância de Marx para o estágio atual das ciências sociais é fazê-los perder tempo”, sentencia. Refuta, no entanto, com veemência, o rótulo de “neomarxista”, não só por ser redutor, mas por gerar equívocos. Alonga-se sobre a relação entre campo e classe, o que o afasta da sua literatura publicada até então. Critica o caráter substancialista do conceito de classe. Contrapõe-lhe a lógica reflexiva das posições do campo. Esclarece: se o burguês é objetivamente burguês, em razão dos meios de produção, as posições de dominante e dominado no campo só existem e têm sentido umas em relação às outras. Introduz, sutilmente, para a melhor compreensão dessa reflexividade, a dimensão não calculada de muitos dos deslocamentos e de tomadas de posição em qualquer campo. Menciona o “habitus” e recomenda a leitura dos gregos, sobretudo Aristóteles. Aponta na “Metafísica” o hábito como condicionante da percepção. Estende a percepção da prática social que se incorpora em trajetórias singulares. Comenta, com entusiasmo, a aplicação moderna dessa reflexão objetivada no conceito de jogo em Wittgenstein. Observa que alguns filósofos pragmáticos americanos “parecem também ver, no hábito, a matriz geradora de comportamento”. Recusa-se a maiores digressões por conhecer “muito pouco” autores como Dewey e James. A dicotomia indivíduo-sociedade, útil para alimentar disputas ideológicas, esbarra nesses esquemas corporais de percepção e classificação do mundo. Sugere a “Fenomenologia da Percepção”. Por intermédio de Merleau-Ponty, alude a uma de suas principais vítimas: Sartre. Mais tarde, em “Meditações Pascalianas” (Bertrand Brasil), detalharia a importância do “intelectual total” na constituição do campo universitário francês no século 20. Na aula, já o fazia, muitos anos antes: “A oposição a Sartre me fez ler autores e forjar reflexões que teriam sido distintas, fossem outros os dominantes”. Ataca o ultra-subjetivismo de “O Ser e o Nada”, destaca a relevância das condições propriamente sociais de definição do “projeto original” e diz não compreender o real alcance do conceito de “má-fé”. Na sequência de Sartre, tendo citado muitos outros autores e conceitos aqui suprimidos, o professor interrompe abruptamente a reflexão. Indaga a si mesmo, inquirindo o público: “Mas, na condição de participantes desta aula, que posição estamos ocupando neste espaço de produção?”.

A lição sobre a aula
Desculpa-se por retomar uma temática já discutida em outros cursos. Refere-se, sobretudo, à sua primeira aula inaugural no Collège de France, em 1981. Fala da instituição como instância de consagração. Da consagração como definidora do valor social de uma conferência. Da conferência como produtora de legitimidade. Da sua legitimidade como porta-voz. Do capital específico do campo acadêmico. Das formas de investimento e incremento desse capital. Das estratégias, definidas em razão de um saber prático incorporado ao longo de uma trajetória propriamente universitária. De um saber prático objetivado em disposições de agir. De disposições constitutivas de um “habitus” propriamente acadêmico. Da força simbólica da lição, como dominação, decorrente de uma autoridade reconhecida. Desse reconhecimento, possível graças ao desconhecimento das suas reais causas. Das causas sociais de fatos sociais.
A sequência de frases permite o desfile articulado de seus principais conceitos. Seu sentido e seu alcance exigem como referencial outros conceitos. O repertório presumido do ouvinte é rico. Os exemplos do cotidiano são raros. Para explicar o “habitus” como sistema de competências, no duplo sentido de habilidades interiorizadas e de autorização social para agir, o professor recorre ao conceito de campo, isto é, de um espaço social de posições, com regras e troféus específicos e, portanto, relativamente autônomo quanto aos demais campos.
“Os conceitos de “habitus” e de campo compõem um todo ontológico”, enfatiza o professor. Ao insistir que o “habitus” é uma forma de subjetivação das estruturas, ou seja, das relações de força em ação no campo, o professor torna sua fala auto-referencial. Qualquer fratura na atribuição de sentido pode representar minutos de incompreensão. Pior para os não-iniciados.
Apesar do hermetismo, a lição não é interrompida nenhuma vez. Um acordo tácito de disposições ao silêncio garante fluidez e dispensa qualquer determinação expressa. Socializações semelhantes tendem a gerar práticas orquestradas, sem nenhuma batuta visível. Assim explicaria o mestre a reverência muda com que foi acolhido. No final da aula, duas horas e 34 minutos após o seu início, as imagens flagraram a abordagem de alguns alunos. Troquei de sala e esperei pelas outras indagações. Autorizado por um olhar, aproximo-me procurando não acusar, em demasia, os efeitos da carência de recursos sociais, decorrente da combinação de fatores como o calourismo e a estrangeiridade. “Être mal dans sa peau” (Estar mal na própria pele), fruto de um ineditismo radical, da falta de qualquer síntese passiva, de um não-sujeito para a situação, da ausência de experiências ao longo da trajetória que, aprendidas e interiorizadas, garantissem alguma reação espontânea, sem cálculo, e oportuna.

Três comentários idênticos
“Não ficou claro em que medida os circuitos de consagração são tanto mais eficazes quanto maior a distância social do objeto consagrado”, perguntei. Isso é claro, corrigiu o mestre. “Imagine-se publicando um livro. Três comentários idênticos e elogiosos: um da sua mãe, outro de um colega seu da universidade e, um terceiro, de um professor que, em outro país, se deu ao trabalho de traduzi-lo. Qual dos três comentários será mais valorizante para você?”, perguntou-me com ternura.
A resposta óbvia tornou o constrangimento indisfarçável. Talvez por isso tenha buscado um incentivo: “A pergunta foi ótima”, continuou, sorrindo: “Normalmente as pessoas fazem das perguntas em palestras um uso legitimador, de autoconsagração. Ao esperar a saída de todos, você reduziu muito esse efeito”. Este artigo, 14 anos depois, relata a pergunta, desmente o mestre e estende para além dos muros da escola a homenagem que o autor lhe faz a cada aula. Bourdieu virou-se e partiu, pondo termo à primeira, mais curta e, para mim, mais significativa de nossas conversas.

 

por Clóvis de Barros Filho em 03/02/2002